Capítulo VIII - Reyna
— ELES SÃO MUITOS.
Reyna se perguntou com amargura quantas vezes tinha dito isso em sua carreira de semideusa. Seria mais fácil fazer um button com essa frase e usá-lo por aí. Quando morresse, estas palavras provavelmente estariam gravadas em sua lápide: Eles eram muitos.
Ela estava cercada por seus cães, que rosnavam para os fantasmas de terra solidificada. Reyna contou pelo menos vinte, e vinham de todas as direções.
O treinador Hedge continuava falando com voz de mulher:
— Os mortos estão sempre em maior número que os vivos. Esses espíritos esperaram por séculos, incapazes de expressar sua raiva. Agora eu lhes dei corpos de terra.
Os fantasmas avançavam lentamente, mas seus passos eram tão pesados que rachavam o calçamento antigo.
— Nico? — chamou Reyna.
— Não consigo controlá-los — disse ele, desemaranhando freneticamente as correias. — Há alguma coisa nessas carapaças de terra. Preciso me concentrar por alguns segundos para fazer o salto nas sombras. Senão, posso acabar nos transportando para outro vulcão.
Reyna xingou baixinho. Sozinha, não tinha como dar conta de tantos e deixar Nico livre para preparar a fuga, ainda mais com Hedge sem poder ajudar.
— Use o cetro — disse ela. — Invoque uns zumbis.
— Não vai adiantar — avisou a voz que falava através do treinador Hedge. — Saia do caminho, pretora. Deixe que os fantasmas de Pompeia destruam essa estátua grega. Um verdadeiro romano saberia que é melhor não resistir.
Os fantasmas de terra avançavam lentamente. Pelo buraco que tinham no lugar da boca, emitiam silvos graves, como alguém soprando no gargalo de garrafas de vidro vazias. Um deles pisou na armadilha que Hedge improvisara com a raquete, deixando-a em pedacinhos.
Nico puxou o cetro de Diocleciano do cinto.
— Reyna, se eu invocar mais romanos mortos, quem garante que eles não vão se juntar a esse grupo aí?
— Eu. Sou uma pretora. Só preciso que me arranje uns legionários; deixe que eu os controlo.
— Você há de perecer — disse o treinador. — Nunca conseguirá...
Reyna acertou a cabeça de Hedge com o cabo da adaga. O sátiro desabou no chão.
— Desculpe, treinador — murmurou ela. — Isso estava ficando chato. Nico: zumbis! Depois se concentre em nos tirar daqui.
Nico ergueu o cetro, e o chão começou a tremer.
Naquele momento, os fantasmas de terra resolveram atacar. Aurum saltou no mais próximo e, com suas presas de metal, arrancou-lhe a cabeça. O casulo de terra caiu para trás e se despedaçou. Argentum não teve a mesma sorte. Ao saltar sobre um outro fantasma, foi atingido na cabeça por um golpe do pesado braço de terra da criatura e foi lançado pelos ares. Com dificuldade, tentou ficar de pé. Sua cabeça estava virada quarenta e cinco graus para a direita e faltava um de seus olhos de rubi.
Reyna sentiu a raiva pulsar no peito como uma estaca quente. Já havia perdido seu pégaso. Ela não perderia seus cães também. Cravou a adaga no peito do fantasma, depois sacou o gládio. Estritamente falando, lutar com duas armas não era muito romano, mas, no tempo que havia passado com piratas, Reyna tinha aprendido mais que alguns poucos truques.
As carapaças de terra se desfaziam com facilidade, mas tinham a força de uma marreta. Reyna não entendia como, mas sabia que não podia se dar o luxo de levar nem um só golpe. Ao contrário de Argentum, ela não sobreviveria se sua cabeça fosse deslocada.
— Nico! — Ela se agachou entre dois fantasmas, deixando que um arrebentasse a cabeça do outro. — Agora!
O chão se abriu no centro do pátio. Dezenas de soldados esqueléticos começaram a rastejar para a superfície. Os escudos pareciam velhas moedas de um centavo corroídas. Suas espadas eram mais ferrugem que metal. Mas Reyna nunca se sentira tão aliviada em ver reforços.
— Legião! — gritou ela. — Ad aciem!
Em resposta, os zumbis puseram-se a abrir caminho por entre os fantasmas, formando uma linha de batalha. Alguns caíram, esmagados por punhos de terra. Outros conseguiram cerrar fileiras e erguer os escudos.
Atrás de Reyna, Nico soltou um palavrão.
Ela arriscou uma rápida olhada para trás. O cetro de Diocleciano estava fumegando nas mãos de Nico.
— Ele está lutando contra mim! — gritou o garoto. — Acho que ele não gosta de invocar romanos para combater outros romanos!
Reyna sabia que, nos tempos antigos, os romanos passavam pelo menos metade do tempo lutando uns contra os outros, mas achou melhor não comentar nada.
— Então cuide do treinador. E se prepare para o salto! Vou tentar ganhar um tempinho para...
Nesse momento, o menino soltou um gemido alto. O cetro de Diocleciano explodiu em pedaços. Aparentemente, Nico não tinha sido ferido, mas olhava em choque para Reyna.
— Eu não... não sei o que aconteceu. Você tem alguns minutos, no máximo. Nossos zumbis vão desaparecer já, já.
— Legião! — gritou Reyna mais uma vez. — Orbem formate! Gladium signe!
Os zumbis cercaram a Atena Partenos, suas espadas prontas para um combate corpo a corpo. Argentum arrastou um inconsciente treinador Hedge para perto de Nico, que prendia as correias ao corpo com uma pressa desesperada. Aurum permanecia de guarda, lançando-se sobre qualquer fantasma de terra que avançasse sobre a linha de batalha.
Reyna lutava lado a lado com seus legionários mortos, transmitindo sua força para eles. Mas ela sabia que aquilo não seria suficiente. Os fantasmas de terra caíam com facilidade, mas outros continuavam a se erguer do solo em redemoinhos de cinza vulcânica. Cada vez que seus punhos de terra acertavam um golpe, mais um zumbi caía. Enquanto isso, a Atena Partenos erguia-se acima da batalha: majestosa, soberba e indiferente.
Uma ajudinha cairia bem, pensou Reyna. Quem sabe um raio fulminante? Ou um bom e velho soco, à moda antiga mesmo. A estátua não fazia nada além de irradiar ódio, que parecia dirigido igualmente a Reyna e aos fantasmas que a atacavam.
Quer me arrastar para Long Island, é?, parecia dizer a estátua. Boa sorte aí, sua escória romana.
Aquele era o destino de Reyna: morrer defendendo a estátua de uma deusa grega passivo-agressiva.
Reyna lutava sem parar, irradiando mais e mais de sua determinação para suas tropas de mortos-vivos. Em troca, elas a bombardeavam com desespero e ressentimento.
Sua luta é por nada, sussurravam em sua mente. O império acabou.
— Por Roma! — gritou Reyna, com a voz rouca. Ela atacou um fantasma de terra com o gládio, ao mesmo tempo em que cravava a adaga no peito de outro. — Décima Segunda Legião Fulminata!
Ao seu redor, os zumbis caíam. Alguns esmagados em batalha, outros se desintegrando sozinhos à medida que a força residual do cetro de Diocleciano finalmente se esvaía.
Os fantasmas de terra fechavam o cerco, um mar de rostos desfigurados com olhos ocos.
— Reyna, agora! — gritou Nico. — Vamos!
Ela olhou para trás: Nico tinha se atrelado à Atena Partenos e levava Gleeson Hedge nos braços, como se o sátiro fosse uma donzela em apuros. Aurum e Argentum tinham desaparecido; talvez tivessem sofrido golpes demais para que continuassem a lutar.
Reyna cambaleou.
Um fantasma de terra tinha acertado um soco em sua caixa torácica. Ela sentiu a lateral do corpo explodir de dor. Sua cabeça girou. Tentou respirar, mas era como inspirar facas.
— Reyna! — insistiu Nico.
A Atena Partenos tremeluziu, prestes a desaparecer.
Um fantasma de terra tentou acertar Reyna na cabeça. Ela conseguiu se abaixar, mas a dor em suas costelas ameaçava fazê-la desmaiar.
Desista, diziam as vozes em sua mente. O legado de Roma está morto e enterrado, assim como Pompeia.
— Não — murmurou ela para si mesma. — Não enquanto eu estiver viva.
Nico estendeu a mão enquanto mergulhava nas sombras. Com o que restava de suas forças, Reyna saltou na direção dele.
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