II
JASON
NATURALMENTE, A SITUAÇÃO ERA PIOR do que Jason havia esperado.
Do contrário, não teria graça.
Espiando através de oliveiras, no alto da colina, ele viu o que parecia
uma festa muito louca de uma fraternidade de zumbis.
As ruínas em si não eram muito impressionantes: alguns muros de
pedra, um pátio interno coberto de mato, uma escadaria escavada na
rocha e que não levava a lugar algum. Tábuas de compensado cobriam
um poço e um andaime de metal sustentava um arco com uma rachadura.
Mas sobreposta às ruínas havia outra camada de realidade: uma
miragem espectral do palácio tal como devia ter sido em seu auge.
Paredes brancas de estuque, com sacadas em toda a sua extensão,
erguiam-se a uma altura equivalente a três andares. Pórticos com colunas
cercavam o átrio central, que tinha uma fonte enorme e braseiros de
bronze. Em doze mesas de banquete, ghouls riam, comiam e provocavam
uns aos outros.
Jason esperava cerca de cem espíritos, mas havia o dobro ali, todos
dando em cima das criadas espectrais que serviam às mesas, quebrando
pratos e taças e basicamente fazendo uma grande bagunça.
A maioria se parecia com os Lares do Acampamento Júpiter —
espectros transparentes roxos, de túnica e sandálias —, mas alguns
tinham corpos em decomposição com carne cinzenta, chumaços
emaranhados de cabelo e feridas horríveis. Outros pareciam mortaiscomuns, em togas, ternos bem-cortados ou uniformes militares. Jason
chegou a ver um vestindo a camiseta roxa do Acampamento Júpiter e
uma armadura de legionário romano.
No centro do átrio, um ghoul de pele cinza vestindo uma túnica grega
esfarrapada desfilava pelo grupo segurando um busto de mármore acima
da cabeça como se fosse o troféu de uma competição esportiva. Os
outros fantasmas aplaudiam e lhe davam tapinhas nas costas. À medida
que o ghoul se aproximava, Jason percebeu que ele tinha uma flecha na
garganta — a haste com penas projetava-se de seu pomo de adão. Havia
algo ainda mais perturbador: o busto que ele carregava… aquele era
Zeus?
Era difícil ter certeza. A maioria das estátuas de deuses gregos era
parecida. Mas o rosto barbado e rabugento lembrava demais o Zeus
hippie gigante do chalé 1 do Acampamento Meio-Sangue.
— Nossa próxima oferenda! — gritou o ghoul, sua voz saindo aguda
por causa da flecha em sua garganta. — Vamos alimentar a Mãe Terra!
Os outros gritaram e bateram suas taças na mesa. O ghoul abriu
caminho até a fonte central. A multidão lhe deu passagem, e Jason
percebeu que a fonte não estava cheia de água. Do pedestal de um metro
de altura jorrava para o alto um gêiser de areia, que se abria em arco e
caía como uma cortina de partículas brancas na base circular.
O ghoul jogou o busto de mármore na fonte. Assim que a cabeça de
Zeus atravessou a ducha de areia, a rocha se desintegrou como se
estivesse passando por um triturador. A areia brilhou como ouro, a cor
do icor, o sangue divino. Então a montanha inteira trovejou com um BUM
abafado, como se estivesse arrotando após uma refeição.
Os mortos vibraram em aprovação.
— Sobrou alguma estátua? — gritou o ghoul para os outros. — Não?
Então acho que vamos ter que esperar chegarem deuses de verdade para
sacrificarmos!Seus camaradas riram e aplaudiram enquanto o ghoul se sentava à
mesa à mais próxima.
Jason apertou seu cajado.
— Esse cara acabou de desintegrar meu pai. Quem ele pensa que é?
— Se eu fosse chutar, diria que é Antínoo — disse Annabeth. — Um
dos líderes dos pretendentes. Se me lembro bem, foi Odisseu quem
acertou aquela flecha no pescoço dele.
Piper estremeceu.
— E a gente achando que esse tipo de coisa mata. E os outros? Por
que são tantos?
— Não sei — admitiu Annabeth. — Talvez sejam novos recrutas de
Gaia. Devem ter conseguido voltar à vida antes que fechássemos as
Portas da Morte. Alguns são apenas espíritos.
— Alguns são ghouls — disse Jason. — Os que têm feridas abertas e
pele cinzenta, como Antínoo… Já lutei contra outros como ele.
Piper deu um leve puxão em sua pena de harpia.
— Eles podem ser mortos?
Jason se lembrou de uma missão que ele tinha cumprido para o
Acampamento Júpiter anos antes, em San Bernardino.
— Não com facilidade. Eles são fortes, rápidos e inteligentes. E
comem carne humana.
— Fantástico — murmurou Annabeth. — Não vejo opção além de
seguirmos o plano. Vamos nos separar, nos infiltrar e descobrir por que
eles estão aqui. Se as coisas não correrem bem…
— Recorremos ao plano B — completou Piper.
Jason odiava o plano B.
Antes de deixarem o barco, Leo tinha dado a cada um deles um
sinalizador do tamanho de uma vela de aniversário. Supostamente, se os
jogassem para cima, os sinalizadores subiriam no ar em um facho de luz
branca que alertaria o Argo II de que o grupo estava com problemas.Naquele instante, Jason e as garotas teriam alguns segundos para se
abrigar antes que as catapultas do navio abrissem fogo sobre o palácio,
envolvendo tudo em fogo grego e estilhaços de bronze celestial.
Não era um plano muito tranquilo, mas pelo menos Jason sentia
satisfação em saber que podia convocar um ataque aéreo sobre aquele
grupinho de mortos barulhentos se a situação ficasse complicada. Claro,
isso se os três conseguissem escapar a tempo. E supondo que as velas do
juízo final de Leo não disparassem acidentalmente — isso às vezes
acontecia com as invenções dele —, o que faria o clima esquentar
bastante, com noventa por cento de risco de um apocalipse calcinante.
— Cuidado lá embaixo — disse ele a Piper e Annabeth.
Piper seguiu pelo lado esquerdo do cume. Annabeth foi pelo direito.
Jason se levantou com seu cajado e saiu mancando na direção das ruínas.
* * *
Ele se lembrou da última vez em que mergulhara em uma multidão de
espíritos malignos, na Casa de Hades. Se não tivesse sido por Frank
Zhang e Nico di Angelo…
Pelos deuses… Nico.
Durante os últimos dias, sempre que Jason sacrificava uma porção de
sua refeição para Júpiter, rezava ao pai para que ajudasse Nico. Aquele
garoto tinha passado por muita coisa, e mesmo assim se oferecera para o
trabalho mais difícil: transportar a Atena Partenos até o Acampamento
Meio-Sangue. Se ele não conseguisse, os semideuses romanos e gregos
entrariam em guerra. Aí, independentemente do que acontecesse na
Grécia, o Argo II não teria um lar para o qual voltar.
Jason passou pelo fantasmagórico pórtico do palácio. Percebeu bem a
tempo que uma seção do piso de mosaico à sua frente era apenas umailusão que cobria um poço de escavação de três metros de profundidade.
Ele desviou e chegou ao pátio.
Os dois níveis de realidade lhe lembravam a fortaleza dos titãs no
Monte Otris, um labirinto de mármore negro com paredes que se
transformavam aleatoriamente em sombras para então se solidificarem
outra vez. Mas durante aquela luta Jason estava com cem legionários.
Agora, tudo o que tinha era o corpo de um velho, um cajado e duas
amigas em vestidos provocantes.
Quinze metros à frente dele, Piper se movia em meio à multidão,
sorrindo e enchendo taças de vinho para os convivas fantasmagóricos.
Se ela estava com medo, não demonstrava. Até aquele momento, os
fantasmas não estavam prestando muita atenção nela. A magia de Hazel
devia estar funcionando.
À direita dele, Annabeth recolhia pratos e taças vazios. Ela não
estava sorrindo.
Jason se lembrou da conversa que tivera com Percy antes de deixar o
navio.
Percy permanecera no Argo II para protegê-los de ameaças vindas do
mar, mas não tinha gostado da ideia de Annabeth participar daquela
expedição sem ele, ainda mais porque seria a primeira vez que iriam se
separar desde que tinham voltado do Tártaro.
Ele tinha puxado Jason para um canto.
— Ei, cara… Annabeth ia me matar se eu sugerisse que ela precisa da
proteção de alguém.
Jason rira.
— É, ia mesmo.
— Mas tome conta dela, está bem?
Jason apertara o ombro do amigo.
— Vou cuidar para que ela volte sã e salva para você.
Jason agora se perguntava se conseguiria manter essa promessa.Ele se aproximou da multidão.
Uma voz rouca gritou:
— IRO! — Antínoo, o ghoul com a flecha na garganta, olhava
diretamente para ele. — É você, seu mendigo velho?
A magia de Hazel estava fazendo seu trabalho. Uma brisa fria ondulou
pelo rosto de Jason conforme a Névoa alterava sutilmente sua aparência,
mostrando aos pretendentes o que eles esperavam ver.
— Eu mesmo! — disse Jason. — Iro!
Doze fantasmas se viraram para ele. Alguns fecharam a cara e
levaram a mão ao cabo de suas roxas e reluzentes espadas. Só então
Jason se perguntou se Iro era inimigo deles, mas agora ele já havia
assumido o papel.
Ele avançou com dificuldade, fazendo sua melhor expressão de velho
mal-humorado.
— Acho que estou atrasado para a festa. Espero que tenham guardado
um pouco de comida para mim.
Um dos fantasmas olhou para ele com desprezo.
— Mendigo ingrato. Posso matá-lo, Antínoo?
Os músculos do pescoço de Jason se retesaram.
Antínoo olhou para ele por alguns segundos, depois riu.
— Hoje estou de bom humor. Venha, Iro, junte-se a nós.
Jason não tinha muita escolha. Sentou-se de frente para Antínoo,
enquanto mais fantasmas se aglomeravam ao redor deles, observando-os
como se esperassem ver uma disputa bem violenta de queda de braço.
De perto, os olhos de Antínoo eram amarelos. Seus lábios, finos
como papel, se abriam sobre dentes afiados. De início, Jason achou que
o cabelo negro encaracolado do ghoul estava se decompondo. Então
percebeu que um fluxo permanente de terra escorria do couro cabeludo
de Antínoo, caindo sobre seus ombros. Placas de lama enchiam feridasantigas na pele cinzenta do ghoul. Mais terra escorria da base da ferida
de flecha em sua garganta.
O poder de Gaia, pensou Jason. A terra é o que está mantendo esse
cara em pé.
Antínoo colocou uma taça dourada e um prato cheio de comida na
frente de Jason.
— Eu não esperava vê-lo aqui, Iro. Mas até um mendigo pode querer
sua vingança. Beba. Coma.
Um líquido vermelho espesso balançava no interior da taça. No prato
havia um pedaço fumegante de carne de origem duvidosa.
O estômago de Jason se embrulhou. Mesmo que a comida dos ghouls
não o matasse, sua namorada vegetariana ficaria um mês sem beijá-lo.
Ele se lembrou do que Noto, o Vento Sul, lhe dissera: Um vento que
sopra à toa não serve para nada.
Toda a carreira de Jason no Acampamento Júpiter tinha sido
construída com base em escolhas cuidadosas. Ele mediava brigas entre
semideuses, ouvia todos os lados de uma discussão, firmava acordos.
Até quando contrariava as tradições romanas, pensava antes de agir. Não
era do tipo impulsivo.
Noto o avisara que essa hesitação acabaria por matá-lo. Jason tinha
que parar de ponderar e começar a tomar atitudes.
Se ele era um mendigo ingrato, tinha que agir como um.
Ele arrancou um naco de carne com os dedos e o enfiou na boca.
Bebeu avidamente o líquido vermelho, que felizmente tinha sabor de
vinho aguado, não era sangue nem veneno. Jason lutou contra a ânsia de
vômito, mas não morreu nem explodiu.
— Hummm! — Ele esfregou a boca. — Agora me contem sobre
essa… como vocês chamaram mesmo? Vingança? Onde eu me inscrevo?
Os fantasmas riram. Um lhe deu um empurrão no ombro, e Jason ficou
alarmado por poder realmente senti-lo.No Acampamento Júpiter, Lares não tinham substância física.
Aparentemente, aqueles espíritos tinham, o que significava mais
inimigos que podiam golpeá-lo, esfaqueá-lo ou decapitá-lo.
Antínoo debruçou-se para a frente.
— Conte-me, Iro, o que você tem a oferecer? Não precisamos mais
de você para enviar nossas mensagens, como nos velhos tempos. Com
certeza você não é um guerreiro. Pelo que me lembro, Odisseu quebrou
seu maxilar e o jogou no chiqueiro junto com os porcos.
Os neurônios de Jason se incendiaram. Iro… o velho que levava
mensagens para os pretendentes em troca de restos de comida. Iro tinha
sido uma espécie de sem-teto de estimação. Quando Odisseu voltou para
casa, disfarçado de mendigo, Iro achou que ele estava invadindo seu
território. Os dois começaram a discutir…
— Você fez Iro… — Jason hesitou. — Você me fez lutar contra
Odisseu. Apostou dinheiro nisso. Mesmo quando Odisseu tirou a camisa
e você viu como ele era musculoso… mesmo assim você me fez lutar
com ele. Não se importava se eu ia viver ou morrer!
Antínoo exibiu os dentes pontudos.
— É claro que eu não me importava. E continuo sem me importar!
Mas você está aqui, então Gaia deve ter tido uma razão para permitir que
você voltasse ao mundo mortal. Conte-me, Iro, por que acha que merece
uma parte de nosso espólio?
— Que espólio?
Antínoo abriu os braços.
— O mundo inteiro, meu amigo. Quando nos conhecemos, queríamos
apenas as terras, o dinheiro e a esposa de Odisseu.
— Principalmente a esposa dele! — Um fantasma careca vestindo
roupas esfarrapadas cutucou Jason nas costelas com o cotovelo. —
Aquela Penélope era muito gostosa, um piteuzinho!Jason viu Piper servindo bebidas na mesa ao lado. Ela levou
discretamente o dedo à boca, como se fosse vomitar, depois voltou a
flertar com os homens mortos.
Antínoo soltou um riso de escárnio.
— Eurímaco, seu covarde chorão. Você não tinha a menor chance
com Penélope. Eu me lembro de você se debulhando em lágrimas e
implorando a Odisseu por sua vida, botando a culpa de tudo em mim!
— Como se isso tivesse ajudado. — Eurímaco levantou a camisa
esfarrapada, revelando um buraco espectral de uns três centímetros de
diâmetro no meio do peito. — Odisseu me acertou no coração, só porque
eu queria me casar com a mulher dele!
— De qualquer modo… — Antínoo se virou para Jason — …agora
estamos visando a um prêmio muito maior. Quando Gaia destruir os
deuses, vamos dividir entre nós os restos do mundo mortal!
— Eu quero Londres! — berrou um ghoul sentado à mesa ao lado.
— Montreal! — gritou outro.
— Duluth! — berrou um terceiro, o que interrompeu a conversa por
um momento, pois os fantasmas olhavam confusos para ele.
A carne e o vinho se transformaram em chumbo no estômago de Jason.
— E o resto desses… convidados? Contei pelo menos duzentos.
Metade deles eu não reconheço.
Os olhos amarelos de Antínoo brilharam.
— Todos desejam os favores de Gaia. Todos têm reclamações e
ressentimentos contra os deuses ou seus heróis de estimação. Aquele
patife ali é Hípias, antigo tirano de Atenas. Foi deposto e se aliou com
os persas para atacar o próprio povo. Não tem nenhum princípio moral.
Faria qualquer coisa por poder.
— Obrigado! — retrucou Hípias.
— Aquele canalha com a coxa de peru na boca — prosseguiu Antínoo
— é Asdrúbal de Cartago. Ele tem contas a acertar com Roma.— Aham — concordou o cartaginês.
— E Michael Varus…
Jason engasgou.
— Quem?
Do outro lado da fonte de areia, o cara de cabelo negro com camiseta
e armadura de legionário se virou a fim de olhar para eles. Seus traços
estavam borrados, esfumaçados e indefinidos, então Jason achou que ele
fosse algum tipo de espírito, mas a tatuagem da legião em seu antebraço
era bem nítida: SPQR, a cabeça com duas faces do deus Jano e seis marcas
por anos de serviço. Sobre o peitoral pendiam a medalha de pretor e o
emblema da Quinta Coorte.
Jason não chegara a conhecer Michael Varus; o pretor infame havia
morrido nos anos oitenta. Mesmo assim, Jason se arrepiou todo quando
seu olhar cruzou com o de Varus. Aqueles olhos sombrios pareciam
penetrar pelo disfarce de Jason.
Antínoo fez um gesto desdenhoso.
— É um semideus romano. Perdeu a águia de sua legião no… Alasca,
não foi? Não importa. Gaia deixa que ele fique por aqui. O garoto insiste
em dizer que sabe como derrotar o Acampamento Júpiter. Mas você, Iro,
ainda não respondeu a minha pergunta. Por que devemos aceitá-lo em
nosso grupo?
Os olhos mortos de Varus tinham deixado Jason nervoso. Ele podia
sentir a Névoa se dissipando a sua volta, como consequência de sua
incerteza.
De repente, Annabeth surgiu junto ao ombro de Antínoo.
— Mais vinho, meu senhor? Ops!
Ela derramou o conteúdo de um jarro de prata na nuca dele.
— Argh! — O ghoul arqueou as costas. — Garota tola! Quem a
deixou voltar do Tártaro?— Um titã, meu senhor. — Annabeth baixou a cabeça em um gesto de
desculpas. — Posso lhe trazer algumas toalhas úmidas? Sua flecha está
pingando.
— Suma daqui!
Annabeth encarou Jason, em uma mensagem silenciosa de apoio, e em
seguida desapareceu na multidão.
O ghoul se secou, o que deu a Jason a oportunidade de organizar seus
pensamentos.
Ele era Iro… ex-mensageiro dos pretendentes. Por que deveria estar
ali? Por que eles deveriam recebê-lo?
Jason pegou a faca mais próxima e a fincou na mesa, dando um susto
nos fantasmas a sua volta.
— Por que devem me aceitar? — resmungou ele. — Porque eu ainda
levo mensagens, suas criaturas estúpidas! Acabei de vir da Casa de
Hades para ver o que vocês estão tramando!
Essa última parte era verdade, e pareceu fazer Antínoo hesitar. O
ghoul olhou para ele, o vinho ainda escorrendo da haste da flecha
cravada em sua garganta.
— Quer que eu acredite que Gaia mandou logo você, um mendigo,
para nos espionar?
Jason riu.
— Eu fui um dos últimos a deixar Épiro antes que as Portas da Morte
se fechassem! Vi a sala onde Clítio mantinha guarda sob um teto
abobadado revestido de lápides. Caminhei pelo chão de joias e ossos do
Necromanteion!
Isso também era verdade. Em torno da mesa, os fantasmas se agitaram
e murmuraram.
— Então, Antínoo… — Jason cutucou o ghoul com o indicador. —
Talvez você devesse me explicar por que é digno dos favores de Gaia.
Tudo o que vejo é um bando de gente morta preguiçosa que não faz nadaalém de se divertir, sem ajudar no esforço de guerra. O que devo dizer à
Mãe Terra?
Pelo canto do olho, Jason viu Piper abrir um sorriso de aprovação.
Depois ela voltou sua atenção para um sujeito grego roxo reluzente que
tentava fazê-la sentar em seu colo.
Antínoo segurou a faca que Jason cravara na mesa. Ele a arrancou e
observou a lâmina.
— Se você é enviado de Gaia, deve saber que estamos aqui
cumprindo ordens. Fomos mandados por Porfírion. — Antínoo passou a
faca na palma da própria mão. Em vez de sangue, escorreu terra do
corte. — Você conhece Porfírion, não?
Jason lutou para manter a náusea sob controle. Ele se lembrava muito
bem de Porfírion e da batalha na Casa dos Lobos.
— O rei dos gigantes… pele verde, mais de dez metros de altura,
olhos brancos, armas trançadas nos cabelos. É claro que eu o conheço.
Ele impressiona muito mais que você.
Ele achou melhor não mencionar que na última vez que vira o rei dos
gigantes, arrebentara sua cabeça com um raio.
Pela primeira vez Antínoo pareceu não saber o que dizer, mas seu
amigo fantasma careca passou o braço ao redor dos ombros de Jason.
— Ora, ora, amigo! — Eurímaco cheirava a vinho azedo e a fios
elétricos queimados. Seu toque fantasmagórico fez as costelas de Jason
formigarem. — Tenha certeza de que não era nossa intenção questionar
suas credenciais! É só que, bem, se você falou com Porfírion em Atenas,
sabe por que estamos aqui. Garanto que estamos fazendo exatamente o
que ele mandou!
Jason tentou esconder a surpresa. Porfírion em Atenas.
Gaia prometera acabar com os deuses destruindo suas raízes. Para
Quíron, mentor de Jason no Acampamento Meio-Sangue, isso significavaque os gigantes iriam tentar despertá-la da terra no Monte Olimpo
original. Mas agora…
— A Acrópole — disse Jason. — Os mais antigos templos dedicados
aos deuses ficam lá, no meio de Atenas. É onde Gaia vai despertar.
— É claro! — disse Eurímaco, rindo. A ferida em seu peito soltou um
estalo, como o respiradouro de um golfinho. — E, para chegar lá,
aqueles semideuses intrometidos vão ter que viajar pelo mar, certo? Eles
sabem que é perigoso voar sobre a terra.
— O que significa que vão ter que passar por esta ilha — concluiu
Jason.
Eurímaco assentiu com ansiedade. Ele tirou o braço dos ombros de
Jason e enfiou o dedo em sua taça de vinho.
— Nesse momento, eles terão que fazer uma escolha, certo?
Em cima da mesa, o fantasma traçou a linha de uma costa, o vinho
tinto brilhando de forma destacada sobre a madeira. Ele desenhou a
Grécia como uma ampulheta deformada — uma bolha grande e tremida
para a parte norte do continente, depois outra bolha abaixo, quase do
mesmo tamanho, para a região conhecida como Peloponeso. As duas
eram divididas por uma linha estreita de mar, o Canal de Corinto.
Jason não precisava do desenho. Ele e o restante da tripulação
haviam passado o dia anterior estudando mapas.
— A rota mais direta — disse Eurímaco — seria rumar para o leste a
partir daqui, pelo Canal de Corinto. Mas se eles tentarem ir por lá…
— Chega — interrompeu Antínoo. — Você fala demais, Eurímaco.
O fantasma fez um ar de ofendido.
— Eu não ia contar tudo a ele! Só sobre os exércitos de ciclopes
estacionados nas duas margens. E os espíritos da tempestade furiosos no
ar. E aqueles monstros marinhos terríveis que Ceto mandou para infestar
as águas. E, é claro, se o navio conseguir chegar a Delfos…
— Idiota!Antínoo se esticou por cima da mesa e agarrou o pulso do fantasma.
Uma crosta fina de terra se espalhou a partir da mão do ghoul e subiu
pelo braço espectral de Eurímaco.
— Não! — exclamou Eurímaco. — Por favor! Eu… eu só queria…
O fantasma gritava enquanto a terra cobria seu corpo como uma
carapaça, que depois se despedaçou, não deixando nada além de um
montinho de poeira. Eurímaco havia desaparecido.
Antínoo se recostou em seu assento e esfregou as mãos para limpá-
las. Os outros pretendentes à mesa o observavam em um silêncio
apreensivo.
— Desculpe, Iro. — O ghoul deu um sorriso frio. — O que você
precisa saber é que os caminhos para Atenas estão bem protegidos,
como prometemos. Os semideuses terão que se arriscar no canal, que é
intransponível, ou navegar em torno do Peloponeso, o que também não é
lá muito seguro. De qualquer modo, é improvável que eles sobrevivam
por tempo suficiente para fazer essa escolha. Assim que chegarem a
Ítaca, nós saberemos. Vamos detê-los aqui, e Gaia vai ver nosso valor.
Pode levar essa mensagem de volta para Atenas.
O coração de Jason martelava no peito. Ele nunca havia visto nada
como a carapaça de terra que Antínoo invocara para destruir Eurímaco.
E não queria descobrir se aquele poder funcionava em semideuses.
Além disso, o ghoul parecia confiante em sua capacidade de detectar
o Argo II. A magia de Hazel estava, pelo visto, escondendo o navio, mas
não havia como dizer quanto tempo isso ia durar.
Jason tinha a informação que eles haviam ido buscar. O objetivo era
chegarem a Atenas. A rota mais segura, ou pelo menos a rota menos
impossível, era dar a volta pela costa sul da Grécia. Era dia vinte de
julho. Eles só tinham doze dias até o planejado despertar de Gaia: em
primeiro de agosto, no antigo Banquete da Esperança.
Jason e as garotas precisavam partir enquanto tinham chance.Havia, porém, mais alguma coisa que o incomodava, uma sensação
gelada de mau pressentimento, como se ele ainda não tivesse ouvido as
piores notícias.
Eurímaco mencionara Delfos. Jason tinha a esperança de visitar o
antigo local do oráculo de Apolo e talvez conseguir alguma informação
sobre seu futuro, mas se o lugar fora tomado por monstros…
Ele empurrou o prato de comida fria para o lado.
— Parece que está tudo sob controle aqui. Para o seu bem, Antínoo,
espero que esteja mesmo. Esses semideuses são muito sagazes. Eles
fecharam as Portas da Morte. Não íamos querer que eles passassem
despercebidos por vocês, talvez com a ajuda de Delfos.
Antínoo gargalhou.
— Não tem como. Delfos não está mais sob o controle de Apolo.
— E-eu entendo. Mas e se os semideuses fizerem o caminho mais
longo e derem a volta no Peloponeso?
— Você se preocupa demais. Essa viagem nunca foi segura para
semideuses, e é muito longa. Além disso, Vitória está fora de controle
em Olímpia. Enquanto isso continuar, não há como os semideuses
vencerem esta guerra.
Jason também não entendeu o que ele queria dizer com isso, mas
assentiu.
— Muito bom. Vou relatar tudo ao rei Porfírion. Obrigado pela…
hum, pela refeição.
Mas Michael Varus, junto à fonte, disse:
— Espere.
Jason engoliu um palavrão. Ele estava tentando ignorar o pretor
morto, mas naquele momento Varus se aproximou, envolto por uma aura
branca enevoada. Seus olhos sombrios pareciam poços. Ele trazia
pendurado na cintura um gládio de ouro imperial.
— Você precisa ficar — disse Varus.Antínoo lançou um olhar irritado para o fantasma.
— Qual o problema, legionário? Se Iro quer ir embora, deixe que vá.
Ele fede!
Os outros fantasmas deram risadas nervosas. Do outro lado do pátio,
Piper olhou preocupada para Jason. Um pouco mais longe, Annabeth
discretamente pegou uma faca da travessa de carne mais próxima.
Varus levou a mão ao cabo de sua espada. Apesar do calor, seu
peitoral estava coberto de gelo.
— Perdi minha coorte duas vezes no Alasca, uma vez em vida, uma
na morte para um graecus chamado Percy Jackson. Mesmo assim, vim
aqui atender ao chamado de Gaia. Sabe por quê?
Jason engoliu em seco.
— Teimosia?
— Este é um lugar de desejos — disse Varus. — Todos nós fomos
atraídos para cá, sustentados não só pelo poder de Gaia, mas também
pelos nossos maiores anseios. A ambição de Eurímaco. A crueldade de
Antínoo…
— Você me lisonjeia — murmurou o ghoul.
— O ódio de Asdrúbal — prosseguiu Varus. — A amargura de
Hípias. Minha ambição. E você, Iro? O que o trouxe até aqui? O que um
mendigo mais deseja? Seria uma casa?
Um formigamento desconfortável surgiu na nuca de Jason, a mesma
sensação que ele tinha quando uma grande tempestade elétrica estava
prestes a começar.
— Eu preciso ir — disse ele. — Tenho mensagens para entregar.
Michael Varus sacou a espada.
— Meu pai é Jano, o deus de duas faces. Estou acostumado a ver
através de máscaras e ilusões. Sabe, Iro, por que temos tanta certeza de
que os semideuses não vão passar por nossa ilha sem serem notados?Jason repassou mentalmente todo o seu repertório de palavrões em
latim. Tentou calcular quanto tempo levaria para pegar seu sinalizador de
emergência e dispará-lo. Com sorte, conseguiria ganhar tempo suficiente
para que as garotas encontrassem abrigo antes que aquele bando de caras
mortos o matasse.
Ele se virou para Antínoo.
— Você está no comando aqui ou não? Talvez deva amordaçar seu
romano.
O ghoul respirou fundo. A flecha vibrou em sua garganta.
— Ah, mas isso pode ser divertido. Continue, Varus.
O pretor morto levantou a espada.
— Nossos desejos nos revelam. Eles mostram quem realmente somos.
Alguém está aqui por sua causa, Jason Grace.
A multidão atrás de Varus se afastou. O fantasma tremeluzente de uma
mulher se aproximou, e Jason achou que seus ossos estavam virando
gelatina.
— Querido — disse o fantasma de sua mãe. — Você voltou para casa.
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